Sangue Ruim (Mauvais sang) 1986. Leos Carax.

mauvais-sang-movie-poster-1986-1020700089   Sangue Ruim (Mauavais Sang) de 1986 dirigido por Leos carax diretor de (Boy Meets Girl , 1984); (Pola X, 1999) e (Holy Motors,2012) seu último trabalho, aclamado por crítica e público, e sem dúvida um dos melhores filmes de 2012. Carax em Sangue Ruim, apresenta um universo bem semelhante a Holy Motors, distópico e atemporal, onde o universo diegético aponta-nos para uma reflexão acerca do Cinema contemporâneo, apropriando-se de diversas ferramentas da linguagem cinematográfica em suas variadas formas, no desenvolvimento de  suas elipses, um exercício de pensar o cinema através do Cinema. Sangue Ruim dispõem-se a refletir sobre dois universos em simbiose, a Sociedade Capitalista, tecnológica, moral e epidêmica dos anos 80, e seu reflexo no espaço cinematográfico em transformação, um Cinema posterior a movimentos vanguardistas de cunho técnico-estético, como a Nouvelle Vague na França.

Com toques de cinema noir, esta ficção científica gira em torno de uma estranha epidemia que se espalha pelo país, chamada STBO. A doença é transmitida através do sexo, mas apenas do sexo sem compromisso, sem vínculo afetivo. Um remédio foi desenvolvido, mas é inacessível. Marc (Michel Piccoli), um rapaz desesperado e cheio de dívidas, é contratado para roubar a fórmula de um prédio do governo. Ele pede ajuda a Alex (Denis Lavant), um adolescente que se sente atraído por duas mulheres: Lise (Julie Delpy), sua namorada, e Anna (Juliette Binoche), amante de Marc.

Inicialmente a película já demonstra seu contorno crítico, com imagens inspiradas no cinema mudo, e um trem com a cor vermelha chegando a estação, vermelho esse que será recorrente na película, e que iremos analisar ao longo do texto. Na estação, temos obras de arte espalhadas pela parede, e algumas em branco, é o atestado de descaso com a arte, sobre o qual Carax irá discorrer ao longo do filme. Ainda na estação, presenciamos um acidente, com um homem caindo na ferrovia, a cena é seguida de indagações sobre a gênese do acidente, suicídio ou homicídio? Pouco importa, o que importa foi o que o originou, a perseguição empreendida pela “Mulher Americana” personagem de (Carrol Brooks) pertencente a uma organização rival a de Marc (Michel Piccoli),que busca também a cura para a doença. Em momento nenhum fica explícito os interesses de cada organização, porém, fica claro para nós em uma passagem dita por Marc: ” As emoções não se enfraquecem como antes. Elas parecem se acumular, uma sobre a outra e nunca cicatrizam.” que a discussão proposta por Carax desenvolve-se pela busca dessa emoção ao longo do filme, emoção sufocada tanto pela sociedade quanto no interior do Cinema, ambos mergulhados em suicídios e constantes assassinatos artísticos.   

Através da direção de Carax, a emoção é suplantada através de cortes bruscos na interação dos personagens, no conflito e na emoção a linguagem cinematográfica configura elementos de um cinema atual, que ao empregar na sua narrativa a multiplicidade de cortes, em detrimento de planos mais longos, sacrifica a emoção da cena, e a atuação dos personagens. Indo além do elemento de montagem, Carax homenageia o Cinema do Expressionismo Alemão, as cenas na rua, cheias de sombras refletidas nas paredes, demonstra que esses personagens são meras sombras de seres humanos , sombra de um cinema e de uma sociedade que subjuga cada vez mais o indivíduo. A inserção de técnicas de imagens e movimento do cinema mudo, expressa ainda mais essa busca pela emoção, busca pelo amor, o amor pela vida e pela arte.

O vermelho da personagem de Anna(Juliette Binoche) é constante, personagem que abraça essa cor, e o amor, sentimento exposto na sua relação amorosa Marc , na figura do homem mais velho. Alex (Denis Lavant) já membro da organização de Marc e interprete do roubo da cura para o STBO constantemente seduz, e desvia Anna, com argumentos morais, sobre sua vida amorosa, e a persegue incansavelmente, tentando subverte-la e conquista-la, afinal Alex abandona tudo para se unir a organização e participar do roubo, abandona seu amor, e seus livros, que o mesmo lia a relia, em busca de sabedoria, agora corrompido pela ganância e paixão, é coibido a aceitar novas regras do jogo, que o próprio reedita.

O filme em sua protuberância simbólica, aponta ainda para outras discussões sociais, em seu início podemos perceber em duas cenas a importância do uso do preservativo nas relações sexuais, e o próprio vírus STBO pano de fundo do filme, se propaga através de uma relação sexual vazia de sentimentos, uma relação sexual onde não existe amor. Basta lembrar que é exatamente nos anos 80 que a AIDS alastra-se pelo mundo, e tanto o vírus quanto  informações começam a percorrer nas mídias e na sociedade. A própria crítica desferida por muitos delineava-se sob o  aspecto moral, a dissolução da família, dos bons costumes, e do sexo sem compromisso. Outra questão de muita relevância no filme, é a discussão ambiental, no decorrer do filme os personagens reclamam de calor, do asfalto quente, e frequentemente aparecem sem camisa, a explicação de tanto calor e  sua justificativa apontam para a passagem de um Cometa, o cometa Halley, porem o próprio discurso do filme em suas diversas facetas já rompe com tal explicação.

O amor discutido no filme, mesmo quando encontrado é de difícil percepção, personagens reclamam de um amor não vivido ou percebido, a própria variedade de sentimentos obscurecem-se na tentativa de Alex um ilusionista e ventrículo, cujo seu apelido é “Boca Fechada” busca controlar, os próprios personagens a sua volta percebem essa dinâmica em sua performance e o contestam, porem encontram-se suficientemente ligados a Alex, e dependem dele para o roubo planejado do remédio. Na medida em que Alex se afasta e não reconhece mais o amor, sua namorada Lise(Julie Delpy) parte em sua busca, no intuito de reintroduzir Alex no caminho do amor, mas Alex representa agora o artista, que vive  de ilusões, afastou-se do amor pela obra, pela criação, uma alegoria tanto de um cinema contemporâneo Hollywoodiano, fato explícito em uma das cenas do filme, em que Hoolywood aparece escrito em uma embalagem, seja representando o homem moderno, que nada mais é do que a caricatura de um ser humano, persuadido de suas caracteristicas singulares. Ser Humano e Cinema são sacrificados em um movimento mútuo.

Alex exitoso no roubo do remédio, parte em fuga com Lise, porém é perseguido por ambas as organizações, sendo alvejado pelo grupo da “Mulher Americana.” Definhando-se no caminho de sua fuga final, ensanguentado no carro ao lado de Anne, morrendo aos poucos em meio a uma música romântica cantada por Anne e Marc, Alex em sua agonia desfere a frase chave para entendermos a intenção de Carax em explorar a nostalgia pelo cinema, seu elo perdido: ” Eu vivi minha vida como um rascunho sem direção.”