Já na sinopse do filme desvelamos o potencial criativo de Lars Von Trier ao nomear as personagens do filme, desvelando todo o processo dramático de (des) personificação e universalização dos personagens interpretados por Willem Dafoe (He) e Charlotte Gainsbourg (She), delimitando também o alcance de representação das forças da natureza que encarnam-se principalmente nesse choque de opostos, tendo na figura da mulher o elemento central da película. Lars von Trier tensiona suas hipóteses já na exposição do nome do filme: “AntiCristo”, evocando sua aproximação com a obra de mesmo título de Friedrich Nietzsche, que criticará a posição da religião no mundo, e sua dinâmica coercitiva involucra de valores e preceitos, minando os seres.
A personagem de Charlotte Gainsbourg após o acidente de seu filho logo nos minutos iniciais do filme perde-se em uma jornada de depressão e auto descoberta, culpa e punição física, através da dor e sensações que a natureza à partir desse acidente norteará seus caminhos, e junto de seu marido psicólogo, espectro associado ao conhecimento científico (“conscientizador?”), tenta despertá-la em todo momento para a realidade, mas qual seria essa realidade de uma mãe que culpa-se pela morte do filho?
O Anticristo de Lars von Trier não é contra à, mas sim uma negação a, pois tudo que existe para o diretor aqui são as forças da natureza em suas próprias contradições e causalidades, e acima de tudo, as vítimas da sensibilidade de tal natureza, humana e do seu entorno. Certa hora da película o personagem do psicólogo interpretado por Williem Dafoe diz: “O luto é uma reação natural”, ora, o fato é que a natureza rege-se em torno da figura feminina, sendo a maternidade um elemento central do filme.
Curioso tocar no assunto da maternidade situada no papel da mulher na sociedade, de redução e circunscrição, pois a dinâmica da sociedade na qual vivemos distancia o ser humano de toda a natureza imanente, de forma a não reconhecer-se mais em essência, e a busca do marido-terapeuta segue a determinação das reminiscências do que seria Ser Humano, o que perdemos constantemente pelo caminho, e combinado a isso, nada melhor do que a figura feminina, duplamente descaracterizada e desdobrada em sua ressignificação.
A natureza entranha-se na película, literalmente e diegeticamente, no decorrer do filme e entre as personagens, até que em retrospecto haja a reconexão das figuras femininas no fim do filme, que foram explicitamente subjugadas em seus âmagos e desfiguradas pela sociedade. Lars von Trier parece situar essas figuras femininas na época da Inquisição, envoltas em uma aura fantasmagórica ao subir a colina com seus rostos censurados.
O filme evoca ainda uma consciência instintiva de uma categoria talvez extinta que a fotografia de Anthony Dod Mantle, buscando sempre (re) criar no alto contraste das cenas em preto e branco do começo do filme, configurando toda uma estética psicológica da mente imbricada da personagem de Charlotte Gainsbourg, que ao longo do filme nunca chegará às vias de resolução, pois a iluminação mesmo nas cenas diurnas são carregadas de baixa iluminação, o que garante sempre um lento despertar e uma dificuldade constante para a penetração da figura do marido psicólogo na mente de sua esposa paciente.
A montagem é o elemento chave do filme, quando ritma o desespero da desaceleração das batidas do coração, tanto no contemplar do natural, quanto no consternar-se diante de tal depressão da personagem, pois a natureza é ambígua em suas mensagens e ponto de vista, assim como o binômio homem-mulher, não necessariamente expressando uma dualidade no filme de Lars Von Trier, e sim um diálogo entre espectros históricos e sociais, figuras diametralmente impostas, pois para a mulher sempre foi designado papéis específicos de santa ou bruxa, e para o homem seguiu-se a tarefa de regulamentação.
O paralelo com o filme Sétimo Selo obra de Ingmar Berman é proposital, Lars Von Trier revisita o filme de Bergman, onde o personagem de Max Von Sydow (Antonius Block) se depara com uma mulher à beira da crucificação, e o mesmo, transfigurando a própria análise do diretor, se questiona em relação àquela figura feminina tão ambígua, enigmática e obviamente vítima daquela sociedade medieval. Ora, assim como Bergman, Trier domina muito bem o universo feminino, analisando em praticamente todos os seus papéis principais a figura da mulher como elemento condutor de uma natureza forte e transformadora, redentora e sintética de todas as mazelas sofridas pela sociedade.
Lars Von Trier, acusado injustamente de ser misógino ao longo de sua carreira, aqui, utiliza a figura feminina como a própria ideia da existência de uma “mãe natureza”, Gênesis da humanidade, um Anticristo necessário, pois essa figura em uma visão dialética irá promover uma síntese, e como o próprio fim do filme indica, reconduzir o Homem de volta ao Éden, se deparando com tantas vítimas femininas no caminho, mulheres mortas nesses violentos processos, é a exposição de um problema histórico cabendo agora a reflexão e superação, para assim, “repovoarmos” a terra.